Os anos passaram feito moinhos de vento e, por tudo que neles passou, ficaram apenas as marcas escondidas por debaixo dessa pele de lagarto que às vezes insiste em mudar de cor, porém continua de lagarto. Daquela época, ficaram apenas as sobras: sobra a tristeza, sobram as pausas e os retratos, sobra o gesto que toca e a falta dos olhos. Sobra tanta falta. Eu não me reconheço nos reflexos que me vejo, talvez seja por conta das reflexões que a vida me trouxe, mas não me nego a olhar, a teimosia é uma de minhas virtudes preferidas. É o equilíbrio entre o gosto pela dor e a vontade da cura.
Do que fui, me sobrou ele. No fundo, eu sabia que seríamos apenas nós dois, pois assim sempre foi. Longe dele, chorei pelos meus amores vãos e, por mais que eu me negasse, ele a mim acompanhou, e eu sabia disso. Pela inexistência dos dele, também o vi sofrer, enquanto, diante de páginas velhas de livros, dedicava todo o sentimento que um dia quis - porém não pôde - dedicar a alguém. Não sei se desistiu, talvez queira apenas esperar. Não sei.
Do que ele foi, sobrei-lhe eu. No fundo, ele sabia que não havia muita escolha. E, mesmo assim, insistiu em manter-se só – ele é teimoso também. Aliás, o que mais lhe cerca é essa sensação de solidão, que ele gosta de manter. Tolo, eu não lhe deixei por um instante, sequer quando a mim jamais conheceu. Eu sempre estive na sede que o torturava, e que ele lutava para achar-se vivo. Entre letras e histórias, eu fui o que lhe concedeu sentido, fui o ar que ele não queria – porém apenas o que ele tinha pra – respirar, e lhe matei. Matei os sonhos, matei-lhe com meu grito, o grito que ele também guardava, porém sabia que, se o revelasse me mataria. Matei-lhe do que me consumia, do que a nós dividia e da vida que não conseguimos aprender. Matei-lhe de amor pelo que apenas valia a nós, ao que ainda somos.
Do que fomos, sobramos-nos nós. No fundo, queríamos que assim o fosse. Sobrou-nos o espaço vazio e a distância mínima que há entre nossos olhos. Sobrou-nos a paixão pelas coisas findas, pelo que rima, pelo que sangra e pelo que muda. Resta-nos ainda o que fomos, pois jamais nos libertamos da essência que nos criou, daquilo que me fez roubá-lo pra mim e me entregar a ele. Do que sentimos, resta ainda o desejo pelo desejo, o sabor que o desconhecido proporciona aos covardes. Do que vemos, ainda voltamos os olhos pros sonhos negros, pro mundo insano, o qual somos os únicos proprietários da solução. Fomos ainda o que hoje somos, porquanto a pele de lagarto que aqui está, durante anos movidos pelos moinhos de vento, guardou a sete chaves essa liberdade que hoje tem para sê-lo.
Do que sou, sobram-me as letras. O sentido que ele me obrigou a guardar. O amor que ele me forçou ter. O ar que, agora, eu tenho para respirar.
Pra aquele que me tomba ao chão com suas doses de realidade. Pro Lucas L. Rocha.
Por: J. Tavares